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O BURACO DA FECHADURA

rabiscos, escrevinhações, achismos e outras bobagens

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Entre a curiosidade e um paradoxal misto de sensações


Eu gosto de observar gente.


Perceber as reações das pessoas.


Não sei exatamente o ponto em que minha curiosidade pessoal e profissional se cruzam, ou o que se sobrepõe a quê.


Penso nas fontes de inspiração de gigantes que admiro.


Dos relatos sobre Jorge Amado e a mania de ir ao meretrício, baixas, becos calçadões e afins apenas para sentar e olhar o fluxo.


De Nelson Rodrigues vendo o mundo pelo buraco da fechadura.


Fato é que este hábito freqüente de observar faz parte da minha rotina, dia a dia.


É uma curiosidade inerente e além, baseada em um olhar sócio-cultural (minha roupagem nobre para o mau-hábito), digo e repito a mim mesmo tentando disfarçar minha bisbilhotice.


Minha mulher se constrange e volta e meia vem me repreender por estar encarando um casal com filho no mercado, um velho sentado na praça, um grupo de jovens falando e gesticulando em alta rotação, os transeuntes da feira e por aí vai...


Mas uma coisa devo garantir.


Só me apetece observação de anônimos.


Conhecidos não me interessam, fuxico muito menos. Então sossegue aí.


Nem se preocupe que nada da sua “vidinha” está no meu radar.


Nem de xeretagem eu gosto.


Curiosidade por vida próxima é futricagem. E nem pela vida do vizinho me interesso.


Explicações desnecessárias e oportunas a parte...


A questão é que muitos devaneios meus vem destas nada sutis observações de “serumaninhos”.


Mas a última situação me causou um paradoxal misto de sensações.


Ainda não consegui digerir se me fez bem, ou mal...


No supermercado, dois senhores conversavam animadamente e em volume elevado.


Gargalhavam entre provocações.


Me aproximo para pegar tomates, sem qualquer intenção de mexericar a conversa alheia, óbvio.


Dois idosos, um baixinho, ainda mais encurvado pelo efeito do tempo, aparentando estar na casa dos setenta anos de idade.


Regata e bermuda do neto com bolsos largos nas laterais. Boné com a bandeira do Brasil na cabeça soltava em altos decibéis:


-Fulaninho (assim mesmo chamando o interlocutor no diminutivo), você está sonhando que seu Luladrão vai voltar ao poder. Pode sentar embaixo de uma mangueira, ou em cima dela se tu quiser (riso largo), que nós não sai (sic) da presidência “nem prum trem”.


Entre risadas, o outro senhor, mais conservado, aparentando uns 60 anos, recebe a galhofa aos risos e retruca no mesmo tom:


-Vamos tirar esta familícia de lá na marra, que é como se trata fascista, Toinho.


-Deixa de conversa seu bode véi.


E ambos riem juntos em ritmos diferentes, mas sincronizados.


Dali, sem roteiro, ou rumo lógico, a conversa descamba para amenidades.


-Ói aqui. Limãozinho pra eu tomar com “Matuta” (cachaça) jájá.


-Tu lá aguenta mais cana, derrota?


-Oxe, agüento cana e namorar.


E tome mais risadaria.


Seguem para complementar cada qual suas compras, mas se esbarram, aqui e ali, soltam mais pilhéria um com o outro e prosseguem.


A cada novo cruzamento e troca de carinho entre amigos de longa data, fica, nos rostos de cada, um imenso sorriso de satisfação e cumplicidade.


Observar pra mim também é sobre aprender.


Há um natural ensinamento de tolerância e superação entre extremos aí.


Para alguns é apenas política, mas é óbvio que é muito mais que isso.


Talvez até admire esta capacidade de superação de diferenças tão extremas, mas não consigo e, honestamente, nem quero ter esta parcimônia, hoje.


O bolsonarismo, a mim, cristalizado no momento, passado tanto tempo, com trocentas manifestações diárias do absurdo que representa, é muito mais que uma adesão, escolha política superficial.


E hoje não dá. Não consigo aplicar esse sábio ensinamento de dois amigos de longa data, deixando tamanhas, abissais diferenças de lado.


Aliás, não é sobre diferir, ou divergências.


Respeito e exercito o contraditório.


É sobre fascismo sim.


Difícil aceitar quem se alinhe as pautas que o bolsonarismo defende.


Tudo ali fede a violência, truculência, morte e desmonte.


Talvez no futuro até me reconcilie com algumas dessas almas desviadas...


Os arrependidos, que foram induzidos pelo fluxo do tempo, motor da história.


Sei lá, acreditar na mudança.


Afinal, sem resignação não há redenção.


Mas hoje, exatamente no correr deste tempo, assistir qualquer nível de adesão a esta patifaria, me torna avesso a todos, incluindo, infelizmente, alguns muito queridos e outrora próximos.


Entrego ao tempo, esse velho sábio.

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