marcosthomazm
Sobre tudo o que for hereditário...

Dentre tantos outros carimbos genéticos, carrego do meu pai trivialidades, como paixão por picolé de limão e corrida.
Estas afeições estão se estendendo a mais uma geração.
Meu filho caçula já consome suco de limão no palito em demasia desde cedo e agora, ainda aos 5 anos, é ele quem reinjeta em mim o saudável doping do running.
E olha que, dentre os Magalhães esta prática viciante começou bem antes de virarem moda, tanto a corrida, quanto o estrangeirismo:
Run, Marcos, Run.
Me recordo de acompanhar meu pai para correr ainda aos meus 7,8 anos de idade, na saudosa sede da Ceplac, em Buerarema.
Sair com “meu veho Peuricles” sempre foi um das melhores coisas da infância e, a partir dali, com doses extras de satisfação.
Comecei a me lambuzar não só de guloseimas (como o episódio dos sete abarás, lembra mãe?), mas também de endorfina e dopamina.
Como na herança nem tudo é delícia de limão, ou apenas prazer dos hormônios da felicidade, do hábito da corrida nós também compartilhamos joelhos combalidos.
Este, aliás, dentre os fatores citados, parece ter sido o único herdado pelo meu filho mais velho.
Joelho bichado.
O picolé e, especialmente, a corrida passam longe das predileções do Tom.
Voltando a rótula, também devo dizer que meu avô paterno e meu irmãomais velho têm o mesmo diagnóstico: ruptura de ligamento.
Um clássico DNA Magalhães.
Eu somo três cirurgias, entre idas e vindas, a última traumática, não pelo procedimento, mas uma maldita infecção bacteriana, que me acamou por tempos a fio. Meu amigo médico e super sincero, Beto, já deu a sentença:
-Seu futuro é prótese, ou cadeira de rodas.
Uma mensagem abençoada e cheia de perseverança.
Já meu pai não se submeteu a intervenção médica, mas tem lesão tão grave que, sem cartilagem alguma em uma das articulações, já não pode, há mais de uma década, praticar o hábito de antes.
Se realiza em boxe e exercícios na garagem, sem longas jornadas.
Eu, há pelos menos dois anos não praticava mais o que meus amigos sarcasticamente batizaram de parkour pelas ruas dos Bancários. Uma tradução livre sobre as minhas incursões entre corridas com obstáculos pelas calçadas, criminosamente, irregulares do bairro.
Ainda no processo de recuperação muscular e bastante fora de forma tenho sido impulsionado pela descoberta do mirim Ben.
Sempre mais ativo que a média dos amiguinhos nas brincadeiras, irrequieto, pouco permanecia parado, de um lado a outro, correndo solto.
Naturalmente, atribuíamos aquilo à energia acumulada, normal de criança, apenas, não um real gosto peculiar.
Depois, ou exatamente por esse gosto próprio, veio a fixação pelo Sonic, aquele personagem azul...
-Ouriço, pai.
Grita logo o Ben.
Esse mesmo.
Fato é que o Sonic, acima de tudo, corre e corre muito. Dele o Ben sempre imitou os trejeitos de jogar os braços para trás e sair em desabalada carreira.
Agora, faz até o alongamento do personagem, digo, ouriço.
Essa paixão já foi tema de aniversário e extravasa o núcleo familiar.
Tem uma coleção de camisas do Sonic (um lote inteiro doado pelo tio materno).
Outra, presente do irmão, se transforma em uma verdadeira fantasia, com um capuz que se estende para cobertura do olho e possui até espinhos simulados.
É essa a preferida para correr.
Assim personalizado, a caráter, transformamos nossas simples idas a padaria em verdadeiras voltas, ampliando percurso por outros quarteirões, rápidas paradas para respirar, conversas sobre a velocidade e habilidade do meu Sonic caseiro etc.
Aquela figura mirrada, toda paramentada e altiva na corrida desperta atenção geral, de motoristas, passageiros a caminhantes e pessoas em suas calçadas.
Mas dia desses o reconhecimento adquiriu ares de fama.
Passando em frente a uma casa, três crianças desciam de um carro, ambos fardados, aparentemente retornando da aula.
A única menina, aparentando uns 4, 5 anos, logo anuncia:
-Olha mãe o Sonic.
Imediatamente as duas outras crianças são atraídas, se viram em nossa direção e começam a apontar.
Vendo aquela curiosa reação gerada digo ao Ben para cumprimentá-los.
Ele acena.
Ao que a menina, comovida, fala:
-Mãe, o Sonic me deu tchau.
Seguindo, Ben, já com o ranço tradicional, dispara:
-Oxe, esses meninos não sabem quem sou eu, ou quem é o Sonic, não? Tanta diferença! Olha o nariz, por exemplo.
-Ué filho, mas não é legal ser visto como o personagem? Não é pra isso que servem as fantasias?
Tento argumentar...
Implacável, Ben dá o sprint final:
-Você gostaria de ser confundido com um animal? Sonic é um ouriço!
Linha de chegada.